Newsletter #3
- 1 de ago.
- 11 min de leitura
VOL 3 • AGO 2025
DEPOIMENTO DE JOVENS PESQUISADORES
A linguagem universal das máquinas
Por: Matheus Maciel Alcantara Salles
Imagine um universo em que o DNA não é apenas uma “sequência de letras”, mas um ponto em um vasto oceano multidimensional. Um lugar onde padrões ocultos, moldados por milhões de anos de evolução, são revelados não por microscópios, mas por algoritmos matemáticos. É esse o mundo que a inteligência artificial (IA) começou a desenhar para a Biologia Evolutiva.
No centro dessa revolução está a ideia de que elementos da natureza (como DNA, formas corporais ou fósseis) podem ser representados como vetores em espaços matemáticos, utilizando princípios básicos de álgebra e geometria.
Nesses espaços, algoritmos de IA não "veem" genes ou espécies como nós, mas analisam relações geométricas entre pontos (para quem se interessar, recomendo os vídeos deste ótimo canal). Uma espécie de borboleta, por exemplo, se torna um agrupamento de pontos definido por suas cores, genes, habitat e outras características. Ao identificar padrões nesse espaço abstrato, a IA revela padrões que muitas vezes escapam aos métodos tradicionais (outro vídeo útil aqui).

Os três pilares: IA, Machine Learning e Deep Learning
Para entender como essa “mágica” acontece, precisamos compreender três conceitos fundamentais:

"Um lugar onde padrões ocultos, moldados por milhões de anos de evolução, são revelados não por microscópios, mas por algoritmos matemáticos"
Inteligência Artificial (IA)
É o campo mais amplo, cujo objetivo é criar sistemas capazes de executar funções consideradas cognitivas: aprender, decidir e resolver problemas. Exemplos clássicos incluem programas capazes de competir com pessoas em tarefas complexas (tipo jogar xadrez “contra a máquina” no computador, sabe?) ou tradutores automáticos que convertem textos entre idiomas.
Machine Learning (ML)
Traduzindo para o português, o aprendizado de máquina é um subcampo da IA em que os programas de computador melhoram seu desempenho em uma tarefa específica por meio de experiência. Por exemplo, se você fornece a um algoritmo milhões de fotos de borboletas já identificadas por espécie, é esperado que um algoritmo de ML em pouco tempo seja capaz de descobrir padrões nesses dados e então passar a classificar novas imagens de forma autônoma, sem a necessidade de novas instruções.
Deep Learning (DL)
É o nível mais “profundo” do ML, inspirado na arquitetura do cérebro humano. Ele se baseia em redes compostas por múltiplas camadas (que podem chegar a centenas ou milhares), cada uma responsável por refinar gradualmente a interpretação dos dados. Essas camadas são formadas por neurônios artificiais, elementos matemáticos simples que transmitem informações de forma análoga às sinapses biológicas. O grande diferencial do DL está justamente nessa profundidade: enquanto algoritmos tradicionais (ou “rasos”) utilizam uma ou duas camadas para aprender com os dados, as redes profundas, chamadas de “redes neurais”, criam estruturas hierárquicas que permitem ao algoritmo aprender padrões complexos e em escala mais fina. Outro componente essencial é o algoritmo de retropropagação, que calcula o erro das previsões e ajusta os parâmetros da rede em sentido inverso (das camadas de saída até as de entrada), otimizando seu desempenho a cada nova rodada de aprendizado. Com esse mecanismo de avanço e correção contínuos, modelos de DL se tornam capazes de extrair padrões ocultos em grandes volumes de dados, seja na identificação de imagens, na interpretação de textos, ou na análise de sequências genéticas.
Redes neurais
As redes neurais são modelos capazes de aprender a reconhecer padrões complexos, como os encontrados em imagens. Um computador, por si só, não entende o significado de dados brutos (por exemplo, uma imagem representada apenas como um conjunto de valores de pixels). A tarefa de associar esses valores à identidade de um objeto é extremamente complexa.

O aprendizado profundo resolve esse desafio ao dividir a tarefa em várias etapas organizadas em camadas. A imagem é apresentada na primeira camada da rede, que recebe os dados brutos. A partir daí, camadas ocultas processam a informação em níveis crescentes de abstração: as primeiras podem identificar bordas simples, comparando o brilho entre pixels vizinhos; camadas seguintes reconhecem cantos, contornos e, depois, partes específicas de objetos.
Por fim, a rede combina essas partes para identificar o objeto presente na imagem. As camadas são chamadas de "ocultas" porque suas representações intermediárias não estão diretamente nos dados ou seja, a rede precisa aprender isso a partir de exemplos.
Para que isso aconteça, o modelo é treinado com milhares de imagens, de forma que aprenda a reconhecer padrões e possa aplicá-los corretamente a novas imagens.
“[...] assim como o cérebro humano sintetiza forma, cor e movimento para reconhecer um animal, podemos utilizar uma rede neural para, a partir de dados de diferentes naturezas, revelar a identidade de linhagens evolutivas”
IA e Biologia Evolutiva (ou o que chamo de trabalho)
Na Biologia Evolutiva, essa capacidade de representar organismos como pontos em espaços de alta dimensão tem revolucionado diversos campos, desde a Genética de Populações, até a Sistemática Filogenética. Neste contexto, algoritmos de ML têm sido utilizados, por exemplo, para tarefas complexas como reconstruir árvores filogenéticas e identificar assinaturas de seleção natural. No caso do meu projeto de Doutorado, especificamente, trabalho na interface da área da Delimitação de Espécies com a IA.
Delimitar espécies é como traçar fronteiras em um mapa. É o processo que nós, que trabalhamos com Biologia Evolutiva, usamos para decidir onde uma “população” termina e outra começa. A ideia central é descobrir quem pertence a qual ramo da árvore da vida. Para isso, combinamos evidências de DNA (buscando variações que indiquem linhagens separadas), com observações morfológicas (formas e padrões corporais) e, às vezes, dados ecológicos (habitats e comportamentos). Com o avanço das técnicas de ML, em vez de dependermos exclusivamente de descrições morfológicas ou de análises genéticas isoladas, hoje podemos integrar dados genômicos, variáveis ambientais e características morfológicas num único modelo, com redes neurais transformando todas essas informações em vetores compatíveis. Idealmente, quando esses agrupamentos se mantêm consistentes em diferentes tipos de dados, temos boas evidências de que são, de fato, espécies distintas. Ou seja, assim como o cérebro humano sintetiza forma, cor e movimento para reconhecer um animal, podemos utilizar uma rede neural para, a partir de dados de diferentes naturezas, revelar a identidade de linhagens evolutivas.
Além de acelerar análises complexas (como cenários envolvendo fluxo gênico ou variações de tamanho populacional), métodos de delimitação de espécies baseados em ML aprendem diretamente com os dados, sem precisar calcular exaustivamente funções de verossimilhança. Porém, assim como em nossas vidas, nem tudo são flores. Em alguns casos, usar ML para tarefas complexas é como ensinar alguém que está aprendendo a dirigir, quando a pessoa só vai bem onde já aprendeu o trajeto. Na maioria dos casos, os algoritmos são “treinados” com base em dados simulados, com valores específicos de parâmetros evolutivos. Isso faz com que eles se tornem muito bons em interpolar dentro dessas condições, mas podem patinar quando encontram situações fora do que viram na fase de treino. É por isso que, embora esses métodos sejam rápidos e poderosos, ainda precisamos garantir que as simulações reflitam bem a diversidade e a complexidade do mundo real, especialmente quando trabalhamos com organismos pouco estudados.
“[...] não apenas para traçar limites entre espécies, mas também para reconstruir as mais variadas histórias evolutivas que moldaram a extraordinária variedade de formas de vida na Terra.”
Conclusão
A inteligência artificial, hoje e provavelmente nunca, substituirá nós, biólogas(os) evolutivas(os). Por outro lado, não faz sentido ignorar o enorme potencial dessa ferramenta, especialmente no que se refere à sua capacidade de identificar padrões e prever processos evolutivos de forma rápida e eficiente. Utilizar a IA nos permite representar a biodiversidade em mapas com múltiplas dimensões, que nos revelam padrões antes invisíveis. Contudo, para que esses mapas reflitam com fidelidade a realidade da evolução, é essencial representarmos nossos dados de forma informativa e combinarmos algoritmos com diferentes vieses e forças.
Em última análise, trabalhar com Biologia Evolutiva exige justamente essa integração: múltiplas fontes de dados, modelos robustos e uma abordagem crítica e criativa. Dessa combinação, emerge uma verdadeira caixa de ferramentas. Não apenas para traçar limites entre espécies, mas também para reconstruir as mais variadas histórias evolutivas que moldaram a extraordinária variedade de formas de vida na Terra.
Até a próxima e fiquem todos com Darwin!
Quem é Matheus?

Matheus é doutorando em Zoologia na UFPR e pesquisa temas em Biologia Evolutiva, com foco no uso de aprendizado de máquina para problemas biológicos. É cofundador da Sociedade Brasileira de Biologia Evolutiva e embaixador da Rede Brasileira de Reprodutibilidade. Atua também na divulgação científica, com colaborações no TED e no canal Nerdologia. Apaixonado por café, boas conversas, cinema, videogames e literatura.
CONVERSA COM OS MESTRES
Olimpíada Regional de Biologia Evolutiva: formação científica contra a onda antievolucionista
Por: Profa. Claudia Russo
Com o objetivo de promover o ensino de evolução biológica entre estudantes do ensino médio, foi criada a Olimpíada Regional de Biologia Evolutiva (ORBE24). A iniciativa surgiu como resposta ao crescente desafio de combater a desinformação sobre a Teoria da Evolução nas escolas. A primeira edição foi concluída em julho de 2025, promovida pela Sociedade Brasileira de Biologia Evolutiva (SBBE) e executada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mais de duas mil escolas da rede estadual do Rio de Janeiro foram convidadas a participar. Dentre elas, 29 realizaram suas inscrições para o evento. A olimpíada foi estruturada em três fases com aprofundamento progressivo, tendo início em junho de 2024. Com essa iniciativa, a ORBE e a SBBE buscam estimular o interesse científico e fortalecer o vínculo entre a escola pública e a universidade de qualidade, enfrentando o movimento anti-ciência e a abordagem criacionista, que vem se difundindo no Brasil e nega a Teoria Evolutiva.

FIGURA 4 Estudantes finalistas da terceira fase da Olimpíada Regional de Biologia Evolutiva
Fonte: A autora
Fase 1
Como sede da SBBE, o estado do Rio de Janeiro foi escolhido para sediar a primeira edição da ORBE. A primeira fase da olimpíada consistiu em uma prova com 30 questões de múltipla escolha, cada uma com quatro alternativas, aplicada presencialmente nas escolas participantes. Participaram desta fase 720 estudantes, oriundos de 17 escolas. Para ser classificado, o aluno precisava atingir uma nota de corte mínima.
Fase 2
Na segunda fase, também aplicada nas escolas, os 339 estudantes classificados provenientes de 16 escolas, realizaram outra prova de múltipla escolha com 70 questões. As provas foram elaboradas por uma equipe de oito docentes da instituição executora (UFRJ), em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Fase 3
Na terceira e última fase da ORBE, participaram os 20 estudantes mais bem classificados na segunda fase, representando 10 escolas. Esses selecionados participaram de uma imersão científica na UFRJ. Nesta etapa, cada aluno classificado formou equipes com até três outros participantes da olimpíada. Sob a orientação de um professor de sua escola, cada equipe desenvolveu um produto educativo voltado ao ensino de evolução biológica em sala de aula. Os formatos sugeridos incluíam vídeos, histórias em quadrinhos, jogos didáticos, guias de atividades ou podcasts. Todas as equipes optaram por desenvolver jogos educativos sobre evolução.


FIGURA 5 Estudantes finalistas da terceira fase apresentando os jogos educativos sobre biologia evolutiva criados sob orientação dos professores de suas escolas
Fonte: A autora
Cinco professores acompanharam os alunos ao Rio de Janeiro. Os estudantes residentes fora da região metropolitana ficaram hospedados em uma casa no bairro de São Conrado, enquanto os demais foram transportados diariamente até a UFRJ. Todas as despesas foram custeadas pela coordenação geral da ORBE. Durante a imersão, os estudantes participaram de aulas práticas sobre diversos temas, ministradas por docentes da UFRJ: insetos (Profª Daniela Takiya), peixes ósseos (Prof. Frederico Henning), poliquetos (Prof. Victor Seixas), plantas (Profª Beatriz Barreto), biologia molecular e sequenciamento de DNA (Profª Michelle Klautau) e forças evolutivas (Profª Claudia Russo). Também visitaram uma exposição de dois andares sobre biodiversidade, organizada por professores e técnicos do Instituto de Biologia da UFRJ, com mediação de alunos de graduação vinculados ao projeto de extensão da universidade.

FIGURA 6 Estudantes finalistas da terceira fase apresentando os jogos educativos sobre biologia evolutiva criados sob orientação dos professores de suas escolas
Fonte: A autora
Ao final da programação de aulas, as equipes apresentaram seus jogos educativos à comissão organizadora da ORBE, aos monitores e às outras equipes. A comissão organizadora avaliou os produtos desenvolvidos com base em critérios pedagógicos, científicos e criativos. Por fim, todos os alunos receberam medalhas, tendo sido concedidas medalhas de ouro a duas equipes, medalhas de prata a duas equipes e medalhas de bronze a três equipes. No dia de retorno às cidades, as equipes visitaram a recém inaugurada exposição no Museu Nacional. A experiência foi extremamente enriquecedora tanto para os estudantes quanto para os professores e organizadores, ressaltando a importância de iniciativas que aproximem a universidade das escolas públicas e promovam uma educação científica de excelência. Professores das escolas que participaram da terceira fase foram convidados a compor a equipe organizadora das próximas edições da ORBE.

FIGURA 7 Estudantes finalistas da terceira fase em visita ao Museu Nacional do Rio de Janeiro
Fonte: A autora
Quem é Claudia?

Claudia Russo é Professora Titular do Departamento de Genética, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Suas linhas de pesquisa incluem biogegrafia e diversificação de grandes grupos animais, incluindo filogenética e estimativa de tempos de divergência. É cofundadora e presidente da Sociedade Brasileira de Biologia Evolutiva Além disso, ela atua na elaboração de produtos ligados ao ensino de evolução.
Email: claudiaamrusso@gmail.com
NOVIDADES & INFORMES

ESPECIAL APOIO II CLEVOL
Premiada como a graduanda com o melhor trabalho apresentado no I Congresso Brasileiro de Biologia Evolutiva, a jovem pesquisadora Natale Cavezzale Dias teve passagem e estadia garantidas pela SBBE para participar do II CLEVOL. Lá, apresentou seu trabalho intitulado “Dance together or die alone: Female preference tips the scales in male display coalitions” e comenta:
“O II CLEVOL foi uma ótima oportunidade para se inspirar pelas diferentes formas de estudar a biologia evolutiva. Foi especialmente inspirador ver como pesquisadores latino-americanos produzem ciência de extrema qualidade apesar de todas dificuldades que sabemos que encontramos. Confesso que alguns momentos me senti um pouco deslocada, tanto por não ser nem graduada ainda quanto por barreiras linguísticas (meu espanhol não é muito bom, algo que quero melhorar), mas durante todo evento fui bem acolhida tanto pela organização quanto pelos participantes, mesmo quando não me entendiam bem. Por fim, seria omissa em não mencionar como não vemos muitas pessoas trans em espaços acadêmicos e logo, apesar de não me sentir em posição de ser exemplo para ninguém, sou grata pela oportunidade de ocupar esse espaço e talvez mostrar para outras pessoas como eu que isso é possível."
Quem é Natale?

Sou estudante de graduação no curso de Ciências Biológicas da UFPR e integrante do laboratório de Interações Biológicas na mesma universidade e tenho grande interesse em questões relacionadas à ecologia e evolução. Atualmente utilizo modelos matemáticos para investigar a emergência de dinâmicas cooperativas em sistemas sexualmente selecionados. Acredito que estes tipos de modelo são excelentes ferramentas para a exploração de dinâmicas biológicas de pontos de vista diferentes mas também nunca dispenso a oportunidade de ir para o mato e me sujar um pouco quando possível.
1º CONGRESO MEXICANO EVOLUCIÓN
Ocorrerá entre os dias 19 e 21 de novembro de 2025, na Faculdade de Ciências da UNAM, na Cidade do México. Oportunidade para estreitar os laços entre as comunidades acadêmicas latino-americanas e promover o intercâmbio de ideias e pesquisas em biologia evolutiva. https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSdZRTl7QsIpx1RS6DyTRKUBKmnucUr9dtDhKHYcgu_fd5M6Xw/viewform
EVOSUR2025
Curso intensivo e presencial voltado a estudantes de pós-graduação e pesquisadores/as em início de carreira, com interesse em biologia evolutiva em sentido amplo. O curso cobrirá parcial ou totalmente os custos de transporte até o Uruguai e hospedagem para participantes provenientes da América do Sul. Prazo para inscrição: 15 de agosto.
EDITAL DE FINANCIAMENTO A EVENTOS NA ÁREA DE BIOLOGIA EVOLUTIVA
A SBBE está com edital aberto para selecionar quatro (4) eventos na área de Biologia Evolutiva, a serem realizados até Fevereiro de 2026; sendo: dois (2) eventos tradicionais, com 5 ou mais edições, e dois (2) eventos não tradicionais, com menos de cinco edições. Mais informações acesse https://www.sbbevol.org/beneficios.
Boletim Informativo
Newsletter de divulgação da Sociedade Brasileira de Biologia Evolutiva
| Publicação Bimensal
Editores desta edição: Fernanda S. Caron e Júnior Nadaline
Design, revisão e composição: Fernanda S. Caron, Bárbara Gantzel, George Pacheco e Júnior Nadaline
Newsletter online: publicada exclusivamente em versão eletrônica em https://www.sbbevol.org/post/newsletter-3







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